Nós, o dinheiro e a raspadinha

A relação dos portugueses com o dinheiro é em tudo semelhante a uma história de amor. Evidentemente que se trata de um amor não correspondido: o dinheiro não quer ter nada a ver com portugueses, e é, aliás, conhecida a sua predilecção por outras nacionalidades.

Uma das razões que impede que a afeição dos portugueses pelo dinheiro se desenvolva para além do amor platónico, e eventualmente seja consumada em amor carnal, é a nossa falta de paciência para engates muito demorados. O tenho-mais-que-fazer é um dos instintos mais poderosos da psique lusitana. Podemos mesmo afirmar que o português não faz, o português despacha. No dinheiro, o que o português procura verdadeiramente é passar do amor platónico ao cigarro pós-coital.

No entanto, o que nos falta em paciência, compensamos largamente em fé. Existe um sentimento de tão profunda e exclusivamente português que ocupa com a saudade e a fobia a correntes de ar o lugar cimeiro do repositório emocional lusitano: a fezada. O leitor, ávido por mais esclarecimentos,
perguntará o que é a fezada. Nós explicamos, seu lambão.

Em matérias do impossível, a fezada funciona como uma espécie de polícia de intervenção num bairro problemático: vai onde o milagre não se atreve a ir. Ter uma fezada é ser vidente em causa própria e acreditar em algo que nem mesmo Deus acredita. E no que toca a dinheiro, os portugueses lembram aquelas pessoas que têm romances online: têm a fezada que eles e o dinheiro foram feitos um para o outro e ainda vão ser muito felizes um dia. Mesmo que nunca se tenham conhecido pessoalmente.

Não admira que o português seja especialmente propenso a expedientes para enriquecer depressa. Tomemos o caso da raspadinha. A raspadinha satisfaz o nosso instinto para o tenho-mais-que-fazer, ao mesmo tempo que activa o processo neurológico-profético responsável pela produção da fezada. No fundo, é um speed dating, que dá a possibilidade que o romance unilateral entre o português e o dinheiro se torne realidade, e se não uma relação significativa, sólida e duradoura, pelo menos que dê direito a uma rapidinha. Em todo o caso, um final feliz.


(para uma performance de Ana Fonseca)

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