Confissões de um portador de caspa

Se tivesse que me definir enquanto pessoa diria que, essencialmente, sou anti-caspa. Tenho caspa desde que me conheço. Apenas posso imaginar o quão feliz e sem caspa eu terei sido antes de me ter conhecido. Tenho tanta caspa que às vezes sinto que, em vez de couro cabeludo, tenho massa folhada na cabeça. O que é chato para alguém não gosta de salgados. 

Todos os dias o meu escalpe lança para a atmosfera milhares de flocos de caspa, alguns tão grandes que mais parecem bases para piza, e outros tão pequenos que mal dariam para albergar a população do Luxemburgo. No entanto, todos os relatos de avistamentos de OVNIs junto do meu cabelo provaram-se mais tarde serem falsos. A explicação oficial é de que nunca se encontrou indícios de vida inteligente na minha cabeça. 

No entanto, não seria de espantar se fossem mesmo mesmo OVNIs. Quando uso roupa escura é extremamente fácil confundir as minhas costas com a via Láctea numa noite de céu limpo, e extremamente difícil (mas não impossível) confundi-las com um mapa de Linda-a-Velha. Que é um sítio, como se sabe, que os OVNIs não costumam frequentar. 

O nome clínico da caspa é dermatite seborreica, que além de soar a um palavrão em romeno, só pode ser mal intencionado. Dermatite seborreica é um nome com o charme e sofisticação comparáveis ao som que se faz quando se tem comichão no céu da boca. São duas palavras que ficam melhor quando são escritas por disléxicos e que nos fazem lembrar que o síndrome de Tourette também afecta a classe médica. 

As doenças deviam ter nomes mais agradáveis. Se os sintomas já chegam para desanimar uma pessoa, então quando se descobre o nome da doença é muito fácil pensar-se em suicídio (não no nosso, mas no de outra pessoa). Quando descobri que a minha doença se chamava dermatite seborreica, tentei subornar um hemofílico a fim de trocarmos de diagnóstico. Infelizmente, o hemofílico enganou-me e acabei com uma infecção urinária. Isto para dizer que quem inventa os nomes das doenças devia pensar um bocadinho nas pessoas que delas padecem. Isso e ser proibido de se aproximar da Conservatória do Registo Civil. Caso contrário, ainda acabamos com crianças chamadas Sífilis, Bruna, Hepatite, ou Esmegma. E com a certeza que dali vai sair um ser humano perturbado, que provavelmente não faz a reciclagem, e que quando crescer vai mudar o nome para Infecção Urinária (que ainda assim dói menos que Jéssica). 

Voltando à minha caspa. Embora reconheça a sua diversidade de formas, apresenta no entanto grandes falhas ao nível de interesse estético. Não produz nada que se aproxime de um quadro do Picasso. O que é pena, porque desde criança que sou extremamente sensível à arte abstracta (por exemplo, Miró causa-me urticária). 

Também é inútil procurar consolo na religião, porque a caspa é uma doença esquecida por Deus. Cristo foi muito solícito quando se tratava de curar cegos e leprosos, mas não mexeu uma palha pelos que tinham caspa. O que suspeitar não só que cegos e leprosos são meninos-queridos do Senhor, como também que Cristo - o filho de Deus, recordo - não percebia nada de dermatologia, o que é pouco prestigiante para a Igreja, que é uma instituição idónea e com elevadíssimos padrões ao nível dos cuidados com a pele. A caspa carece ainda de santo protector. O candidato mais próximo seria São Bartolomeu, que foi um sujeito que foi esfolado vivo, e acabou por largar mais mais pele que a Lili Caneças em operações plásticas. Lembre-se que, entre outras coisas, este indivíduo é santo padroeiro dos fazedores de cintos. O que basicamente é ser a favor da violência doméstica. 

Todas as doenças têm o respectivo dia internacional, mas não a caspa. Caso existisse Dia Mundial da Luta contra a Caspa, acredito que, em vez de porem um laço ao peito, as pessoas iriam mostrar o seu apoio com um laço nos ombros. E passavam o dia inteiro a sacudi-lo. 

40% da população Mundial tem caspa. Isto significa que somos mais de 3 biliões de pessoas a sofrer do mesmo. Isto é mais gente do que a população da China e da Índia se juntassem ao sindicato dos trabalhadores do Metro de Lisboa. 3 biliões são, ainda assim, insuficientes para alarmar para a comunidade científica, entretida com vírus, epidemias e outras calamidades que não envolvem comichão no escalpe. Prioridades no mínimo questionáveis. E se é verdade que há crianças a morrer de fome em África, o que é muito triste, sem dúvida, também nunca vi nenhuma a sacudir caspa dos ombros. 

Finalmente, quando se fala de caspa é obrigatório falar-se de champô. Sou um grande consumidor de champôs para a caspa (nunca se for conduzir depois). Nos meus anos de experiência posso afirmar que os champôs anti-caspa estão para a caspa como uma uma bota está para uma salada de frutas: não está ali a fazer nada. Os anúncios de champôs mostram o couro cabeludo como uma espécie de pinhal de cabelos em péssimo estado, mais finos que um etíope guloso, e mais escamados que uma cebola com um escaldão. A acção do champô ocorre sob a forma de um tsunami que opera uma limpeza digna de genocídio. Depois os fios de cabelo surgem agora livres de caspa, além de gordos e saudáveis como lombrigas. 

Infelizmente, comigo isso não acontece. Caso tivesse piolhos, a minha cabeça seria uma habitação social em condições degradantes (a menos que os piolhos em causa sejam apreciadores de soalho fluante, nesse caso ignore a frase anterior). Os anúncios de champôs afirmam 99,9 % de eficácia contra a caspa, o que só pode ser interpretado como um esforço pouco sério dos laboratórios de champô, incapazes de dar o 0,1% que falta. Aceitar comprar um champô anti-caspa com 99,9% de eficácia faz tanto sentido como ir a um restaurante que anuncie ter comida 99,9% livre fezes. Aquele 0,1% que falta provavelmente vai fazer-me pensar duas vezes antes de encomendar esparregado.



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