WCSI: Investigação criminal sanitária

   Era uma segunda-feira igual a tantas outras, com a única diferença de que esta sucedia a um sábado, o que tecnicamente a tornava um domingo. Ligaram-me de madrugada a relatar uma ocorrência. Segui imediatamente para o local, sem tempo de me barbear ou pintar as unhas. A cena do crime já tinha sido isolada: fora encontrada uma sanita imaculadamente limpa numa casa de banho pública. Era mais uma de uma série de sanitas que vinham aparecendo limpas por toda a cidade. Como habitualmente, não havia testemunhas, apenas um fresco odor a limão. Comecei imediatamente a trabalhar no caso. 

   Em vinte anos de carreira assisti a muitas coisas que me provavam a faceta mais vil da alma humana, a maior parte delas em reality shows e espectáculos de variedades, mas nada me tinha preparado para isto: uma superfície de loiça completamente desinfectada, sem qualquer pestilência ou vestígios do rol indignidades que ali ocorre (algumas apenas comparáveis aos famosos cozinhados da minha sogra). Tapei a boca com um lenço, o cheiro a limpo dava-me náuseas. Pensar que um ser humano fora responsável por tamanha atrocidade abalava qualquer esperança num destino bom para a Humanidade. Estava empenhado em caçar este tipo. 

   A Unidade estava há muito sem cães pisteiros (um fora atropelado e o outro estava a convalescer de uma complicada operação de mudança de sexo), pelo que pedi a uma grávida que farejasse o local do crime. Sem sucesso, a que acresceu ainda o infortúnio de a grávida ter apanhado pulgas, pelo que teve de ser abatida. 

   Nos dias que se seguiram interroguei algumas dezenas de pessoas e electrodomésticos, mas em vão. Sem pistas e nem testemunhas, a minha cabeça enchia-se de questões para as quais não tinha resposta: Tratar-se-ia de um crime passional ou premeditado? Haveria cúmplices? Como é que se escreve, piaçá ou piaçaba? Foi aí que me lembrei do piaçaba. Pedi imediatamente que se procedesse à recolha de impressões digitais. 

   Era o avanço de que estava à espera. As impressões pertenciam a um homem caucasiano na casa dos 50 anos e de aspecto asseado (um tarado). Resolvi fazer-lhe uma visita.

   O suspeito começou a fugir assim que me viu. Corri atrás dele o mais rápido que pude (tinha escolhido mal o dia para estrear os sapatos novos). Felizmente o homem interrompeu a fuga para indicar as horas a um transeunte. Saltei sobre ele e gritei “São horas de apanhar um criminoso!”, apesar de o relógio indicar claramente sete menos quinze. Se estava contente por ter apanhado o suspeito, estava triste por ninguém para além dele ter presenciado o meu momento de inspiração. Revistei-o. Trazia consigo luvas de borracha, um esfregão e garrafas de plástico com líquido no interior. Mais tarde, os testes deram positivo para lixívia e WC pato. 


   Durante o interrogatório usei a velha táctica do polícia bom e do polícia bombom, em que o primeiro interroga o suspeito, enquanto o segundo fica sentado a um canto embrulhado em papel brilhante e com um aspecto delicioso. Resultou. O suspeito confessou todos os crimes e depois contou-me a sua história. 

   Disse-me que era um poeta aclamado, que cantava as mais subtis emanações da beleza e do amor, mas a sua paixão secreta sempre tinham sido as fossas e esgotos. Falou-me da infância, feliz até ao incidente com um falso peixinho-dourado: após anos a viver lá em casa descobriu-se que o peixinho era afinal um instrutor de judo no desemprego. Quando este morreu, demoraram horas até o conseguirem despejar pela sanita. Os seus crimes eram a forma de manter vivo o sonho de menino que lhe fora negado. 

   Não pude deixar de sentir pena pelo tipo enquanto este era levado em algemas. Mas foi para casos destes que me tornei detective e não anão de circo (o facto de não ser anão foi sempre um forte handicap para mim). Caso encerrado. Fui para casa e pus-me a admirar a minha sanita. Contemplei o espesso sarro que ali crescia, miscelânea de toda a sorte de imundície, pecúlio de anos e anos de continuada porcaria. Uma valente esterqueira da qual me podia orgulhar. Pensei no meu filho e depois chorei. Hoje ele podia dormir descansado, as ruas estavam mais seguras.



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